Dor em silêncio

Capítulo II - O que o cão e gato nos tentam dizer, sem palavras

A Dor Fala Através do Comportamento

Cães e gatos não usam palavras, mas comunicam de muitas outras formas: e as alterações no comportamento podem ser o primeiro sinal de dor. Quando a dor persiste, não afeta só o corpo. Pode transformar até o animal mais sociável num companheiro apático, ansioso ou até agressivo. A dor não é só física — é também emocional. Ignorá-la ou tratá-la mal pode minar não só a saúde do animal, mas também a relação que temos com ele.

É um erro comum pensar que um animal só reage à dor quando é tocado. No entanto, muitos cães e gatos reagem a aproximações, movimentos ou até rotinas do dia-a-dia, por associarem esses momentos a experiências dolorosas anteriores. O simples facto de preverem uma situação desconfortável pode ser suficiente para desencadear comportamentos defensivos como o rosnar, esconder-se ou até morder. Este tipo de comportamento não tem a ver com desafio, teimosia ou mau carácter. Tem a ver com sobrevivência.

Como Identificar a Dor?

Nos animais, a dor não se manifesta por palavras, mas sim através de alterações subtis no comportamento e na postura — sinais muitas vezes desvalorizados, mas que podem indicar dor física, incluindo dor crónica ou neuropática.

Muitos cães e gatos escondem a dor como mecanismo instintivo de sobrevivência, para não parecerem vulneráveis. Por isso, é essencial estar atento a mudanças de rotina ou atitude.

Alguns dos sinais que podem indicar dor incluem:

 

Mudança de comportamento

Afastamento social, esconder-se ou até dificuldade em ficar longe dos tutores, perda de interesse por atividades habituais (brincadeira, interação). Maior reatividade ou agressividade, mesmo em contextos neutros. Inquietação — andar repetidamente de um lado para o outro, dificuldade em relaxar, ou até ficar mais apático.

Comportamentos Autodirigidos

O sinal mais comum é lamber, roer ou mordiscar repetidamente uma zona do corpo — ou várias, já que a dor pode ser referida, ou seja, sentida noutro local que não a sua origem. Mas também podem surgir outros, como perseguir insistentemente a cauda, higiene excessiva (overgrooming nos gatos), entre outros.

Mobilidade restrita

Dificuldade em mover-se ou realizar atividades habituais — como levantar-se, sentar, subir escadas ou saltar para o sofá. Pode também apresentar rigidez ao caminhar, alterações na postura e até mudanças na posição habitual de dormir.

Alterações nas rotinas

Mudanças no apetite (aumento ou diminuição), nos padrões de sono, bem como alterações nos comportamentos de higiene — como urinar fora da caixa ou deixar de se limpar adequadamente.

Estes sinais são inespecíficos, ou seja, podem também surgir noutras condições (ex.: medo, stress, alterações cognitivas). No entanto, a dor deve ser sempre considerada como hipótese até prova em contrário — especialmente em animais geriátricos ou com doenças crónicas.

Sinais mais evidentes a considerar:

  • Arfar/Respiração acelerada em repouso (não relacionada com calor, exercício, stress ou patologias cardíacas e respiratórias).

  • Vocalizações, aumento/diminuição. Uma vocalização a ter em atenção é o ronronar nos gatos que é também utilizado como uma forma de auto-regulação e pode ser um sinal de dor.
  • Alterações na expressão facial e linguagem corporal: olhos vidrados, orelhas baixas, sinais de stress ligeiro (ex. lamber o focinho quando nos aproximamos ou tocamos).

  • Resistência ao toque ou manipulação: O animal evita ser acariciado ou manipulado, mesmo em zonas que antes tolerava bem.
  • Tremores e salivação excessiva.

  • Hiperalerta ou “freezing” (imobilidade) em situações onde antes havia tranquilidade.

Porquê prestar atenção a estes sinais?

A dor crónica mantém o cérebro em estado de alerta constante, ativando repetidamente os circuitos relacionados ao stress e à ansiedade. Este ciclo contínuo contribui para o aumento da ansiedade, que por sua vez amplifica a perceção da dor. Com o tempo, instala-se um ciclo vicioso: estímulos neutros (como um toque ou aproximação) passam a ser interpretados como ameaças, resultando em reações exageradas como agressividade ou fuga.

Reconhecer estas mudanças comportamentais não só ajuda a quebrar o ciclo dor–ansiedade, como permite detetar mais cedo doenças subjacentes, garantindo um diagnóstico precoce e um tratamento mais eficaz.

Ouvir o Comportamento é Tratar com Empatia

O comportamento é a voz silenciosa da dor. Quando um cão ou gato muda, hesita ou se retrai, está a tentar comunicar algo — e muitas vezes, esse “algo” é dor. Reconhecer que a dor não se resume a mancar ou chorar, mas se manifesta em alterações subtis do comportamento, é um passo essencial para cuidar verdadeiramente da saúde física e emocional dos nossos animais.

Ignorar estes sinais ou interpretá-los como teimosia, mau feitio ou “mania” é desvalorizar um pedido de ajuda. Já o reconhecimento precoce pode quebrar o ciclo da dor e da ansiedade, devolver qualidade de vida ao animal e fortalecer o vínculo que temos com ele. Observar com atenção e agir com empatia é uma das formas mais profundas de escuta — e de cuidado.

BLOG

Autora

Patrícia Esteves
Comportamentalista Clínica - Yris Hub

Bibliografia

Horwitz, D. F., & Mills, D. S. (Eds.). (2009). BSAVA manual of canine and feline behavioural medicine (2nd ed.). British Small Animal Veterinary Association. https://www.bsavalibrary.com/content/book/10.22233/9781905319879

Mathews, K., Kronen, P.W., Lascelles, D., Nolan, A., Robertson, S., Steagall, P.V., Wright, B. and Yamashita, K. (2014), Guidelines for Recognition, Assessment and Treatment of Pain. J Small Anim Pract, 55: E10-E68. https://doi.org/10.1111/jsap.12200 

Merola I, Mills DS. Behavioural Signs of Pain in Cats: An Expert Consensus. PLoS One. 2016 Feb 24;11(2):e0150040. doi: 10.1371/journal.pone.0150040. PMID: 26909809; PMCID: PMC4765852

Mills DS, Demontigny-Bédard I, Gruen M, et al. Pain and Problem Behavior in Cats and Dogs. Animals (Basel). 2020;10(2):318. Published 2020 Feb 18. doi:10.3390/ani10020318

Overall, K. L. (2013). Manual of clinical behavioral medicine for dogs and cats. Elsevier Health Sciences.

WSAVA Global Pain Council. (2022). WSAVA global pain management guidelines for dogs and cats. World Small Animal Veterinary Association. https://wsava.org/global-guidelines/global-pain-management-guidelines/

  • Comportamento